Estar a trabalhar em África como treinador obrigou-me a reflectir sobre situações que passam despercebidas muitas vezes ao comum dos cidadãos europeus. Vem-me à memória a conversa que tive um dia com uma velha personagem de uma aldeia, bem no interior do Quénia, que me pareceu ser pessoa muito
considerada pela população local devido à 3.,sabedoria que demonstrava. Dizia-nos ele:
Então, vem à procura de pessoas que J corram muito!... Pois, olhe, não perca tempo a ver muita gente, veja só aqueles que se levantam cedo, caminham muito e andam todo o diafora da aldeia. Veja o que acontece com os coelhos ... Os que estão fechados em caixas nas aldeias, não correm nada, mas os seus irmãos que andam pelos campos nunca são apanhados. Veja também os pássaros que estão dentro das gaiolas ... Quase não sabem voar, mas os seus irmãos que andam nas árvores parecem aviões ...
Na realidade, depois desta verdadeira lição que escutei no solo africano, comecei a utilizar um método diferente para a detecção de novos talentos para a prática da Corrida. Em lugar de fazer provas com todos os jovens das pequenas povoações que me surgem, apenas o faço com os rapazes e raparigas que me parecem mais activos. Anteriormente, a regra era chegar a qualquer aldeola e organizar uma corrida simples com todos os que estivessem ao dispor, aliciando-os com a oferta de meia dúzia de "t-shirts" e bonés. Agora, só utilizo o sistema com os mais activos e sou eu que os escolho antes, depois de um ou dois dias a observar a vida local.
Tenho de reconhecer que as palavras pronunciadas pelo ancião da aldeia, embora fruto de uma observação directa ao longo de anos, possuíam muito de verdade e até de cunho científico. Com efeito, o célebre treinador sueco Gosta Olander, um dos criadores do sistema Fartlek, no seu livro "1500 à la Une" (edições
"La Table Ronde"), consagrado ao campeão Michel Jazy, menciona as pesquisas do Dr. Encausse sobre o desenvolvimento do coração em vários animais e que passo a mencionar:
Canário doméstico
Canário selvagem
Coelho doméstico
Coelho selvagem
Lebre
- 7,Ogramas
-11,0 "
2,4 "
2,7 "
7,7
o que o velho africano queria mesmo dizer era que só deveria procurar as lebres, o que, cientificamente, correspondia ao resultado do estudo levado a efeito pelo Dr. Encausse.
Seria bem diferente começar a treinar um coelho em vez de uma lebre, pois o volume cardíaco deste animal é, logo à partida, três vezes superior.
A IMPORTÂNCIA DO "TODO O TERRENO"
Creio não existir nenhuma lebre a treinar corrida pelos campos, o que não obsta ser reconhecida a sua superior velocidade relativamente ao seu parente coelho. Porém, não existem dúvidas de que os pisos variados fazem toda a diferença, permitindo esforços diversificados e com a mobilização de toda a estrutura muscular. Comparado com a corrida em superfície plana, verifica-se uma grande diferença de possibilidades em termos de treino físico e, no entanto, a maioria dos corredores opta quase sempre pelos pisos planos e muito mais fáceis de progressão. Vejamos os detalhe algumas dessas situações na prática da Corrida:
~ NATUREZA DO PERCURSO - Há que contar com o acréscimo de 30 a 60 segundos, ou até mais, por cada quilómetro, em comparação com os normais andamentos em superfície plana. Esta precaução é muito importante no que diz respeito à avaliação dos possíveis andamentos em terreno variado;
A AREIA - Ora aqui está um tipo de piso
extremamente difícil para a progressão, pois as
superfícies de impulsão não são estáveis. Para.
além do perigo das entorses, há que estar
consciente quanto à fadiga muscular
generalizada dos membros inferiores. A solução
prática é modificar a passada, tentando correr
mais em bicos de pés para que a superfície de
contacto dos pés com o solo seja menor. No que
se refere às sessões de treino, convém enfrentálas
com moderação e apenas uma vez por
semana, sobretudo em pisos de areia seca;
-+ TERRA SOLTA - Não é muito comum ir
correr em pisos de terra solta, não só por ser
difícil encontrá-los, como também por
representarem um certo perigo para as
articulações dos membros inferiores. Encontrase
efectivamente uma grande diferença quando
se compara a progressão em terrenos deste
género com os de tipo mais fixo. O trabalho
muscular é muito mais exigente, obrigando
muitas vezes o corredor a maior acção de
equilíbrio através do movimento de braços.
Recomenda-se moderação na utilização de tais
superfícies e, no máximo, apenas uma vez por
semana;
-+ LAMA - Existem várias diferenças,
originadas pelo teor de água que a lama pode
conter. No entanto, não deixa-de ser uma boa.
superfície de treino para períodos de alguns
minutos e sempre intercalados por outras
sessões em pisos diferentes, para já não se falar
na grande motivação que se torna necessária
para enfrentar semelhante período de
preparação. Recomenda-se a utilização de
sapatos com sola de rasto acentuado, de forma a
permitir maior aderência.
-+ CARUMA E FOLHAGEM CAÍDA - Para
muitos corredores, trata-se de um piso ideal de
preparação, mesmo para aqueles desportistas
que não têm por objectivo despender esforços
em "todo o terreno". Impõe-se uma certa
precaução quanto a eventuais ramos caídos que
possam ocasionar entorses. Como, regra geral,
isso pode acontecer em zonas mais ou menos
húmidas, existe ainda o perigo do corredor
escorregar ou de encontrar terreno com alguma
água;
-+ TERRENO PEDREGOSO - Talvez o mais
exigente sob o ponto de vista da concentração do
esforço, atendendo a que se trata de piso
susceptível- de ocasionar quedas, situação nada
agradável, principalmente quando se corre.
Impõe-se a utilização de sapatos bemprotegidos, tanto na sola como nas partes
laterais. É natural, portanto, que estejamos
perante um tipo de piso que só deve ser utilizado
em situação extraordinária ou se,
excepcionalmente, vamos competir em prova
com tais características;
-+ RELVADO - Tanto em subidas como em
superfície plana, não há dúvida de que se trata
do local ideal para que qualquer sessão de treino
se transforme num prazer permanente. Os
campos de golfe são zonas ideais para isso e não -
haverá nenhum adepto da Corrida que não
deseje poder pisá-los. As fases~e apoio e
impulsão realizam-se na perfeição de
movimentos, o que possibilita um eficaz
desenrolar de passada;
-+ SOLOS DE TERRA BATIDA - Ora aqui
está um local que entra nas preferências de
qualquer corredor, independentemente do ritmo
que utilize em plena corrida. Tal como o asfalto,
trata-se de um piso muito mais procurado por
todos e nada há a dizer quanto às precauções a
tomar;
-+ ÁGUA- Não, não me refiro à hipótese de um
atleta correr com o corpo submerso e só com a
cabeça à vista, mas sim com os pés cobertos por
cerca de um palmo de água. O ideal será
preferir uma zona costeira que permita correr
de facto sobre areia. Trata-se de um treino de
grande utilidade, que possibilita fortemente o
reforço muscular de grande intensidade e que é
muito apreciado por um bom número de
corredores. São sessões de preparação que
podem durar até uma hora e com resultados
muito positivos;
Uma chamada de atenção quanto à
inclinação das praias, porque se ela apresentar
um declive acentuado, pode originar situações
propícias ao aparecimento de lesões no Tendão
de Aquiles e nos joelhos. Assim, há que ter em
atenção tal pormenor.
-+ ASFALTO - Segundo uma sondagem levada
a efeito pela revista "Runners World", 60 a 65%
dos adeptos da Corrida fazem-no neste tipo de
aderência e as consequências da utilização de
algo tão duro traduz-se pela maior percentagem
de lesões. O que posso dizer em torno de tudo
isto? Apenas repetir uma palavra: - - - , precauçao ... precauçao ... precauçao.
-+ NEVE - Aqui, encontramos o oito e o oitenta.
Para quem
vezes por
proporciona
utiliza
ano,
grande
a neve uma dezena de
é prazer enorme e
diferença nas sensações jáconhecidas dos corredores Os que são obrigados
a isso, ou seja, 'à sua utilização durante semanas
ou meses, acham a situação bem diferente e a
monotonia e stresse próprios do ambiente
invernoso acabam por desmotivar qualquer
desportista. Impõe-se, tanto quanto possível, o
uso de sapatos impermeáveis (o Gorotex é óptima
opção) e tudo dependerá da altura da neve no
solo. Se for apenas de alguns centimetros, é um
bom terreno de progressão;
-7 GELO - Naturalmente que estamos perante
um tipo de piso mais propício a acontecer nos
países do norte. A não ser que se adapte aos
sapatos de treino de corrida correntes próprias
para esse efeito, não aconselho de forma alguma
praticar a nossa modalidade em tais
circunstâncias, pois o perigo de quedas e de lesões
é quase uma constante. Lembro que as correntes
podem ser encontradas em qualquer
estabelecimento especializado em desportos na
neve e, na maioria dos casos, são vendidas para
caminhar e não para correr;-7 ERVA CRESCIDA - Refiro-me a zonas de
vegetação com alguns centimetros de altura, isto
é, aquele tipo de vegetação natural que se
encontra nos campos e nos terrenos baldios de
algumas cidades. Quando se corre em pisos desta
natureza, há que atender ao que possa estar
escondido sob vegetação dão densa. Pedras,
vidros, pequenos troncos, etc., podem
representar quedas e lesões não desejáveis, pelo
que se impõe uma redução no andamento e o
redobrar de atenção. Só excepcionalmente se
pode recomendar correr em tais condições.
... E QUANTO ÁS DIFERENTES
CONDIÇÕES ATMOSFÉRICAS?
Ao mencionar as particularidades de
cada terreno que um corredor pode encontrar,
considero também a componente condições
atmosféricas. Vejamos as situações que me
ocorrem:
-7 FRIO - Tudo pode ser problemático nos
primeiros 10 ou 15 minutos de corrida. Depois
até podemos estar envolvidos num ambiente
bastante agradável. Não obstante esta realidade,
também há a considerar a hipótese de estarmos
perante uma temperatura tão baixa que nos leve
a ter uma permanente situação de frio. A
utilização de luvas ligeiras é sempre
aconselhável, assim, como um gorro ou algo
semelhante que nos proteja as orelhas. Bastante
útil, também, é a protecção do pescoço, e isso
pode ser facilmente conseguido cortando um
quarto de uma das mangas compridas de
qualquer camisola de algodão. O importante é
que o corredor nessas condições se lembre que a
perda de calor no corpo humano se verifica,
sobretudo, através das suas extremidades e,
portanto, a cabeça e as mãos são pontos
vulneráveis
O recurso a camisolas finas, também de
manga comprida, e colans é equipamento que
qualquer corredor não deve prescindir nestes
dias. .-
-+ CHUVA - Tudo dependerá do seu grau de
intensidade, podendo passar de uma sensação
bastante agradável (no caso de chuva muito
miudinha) até algo de assustador (quando se
trata de chuva torrencial). Pessoalmente,
aconselho o mesmo tipo de equipamento
indicado no ponto anterior, acrescido de um
impermeável, composto ou não de calças,
consoante o grau de pluviosidade.
Um conselho pessoal: nos dias de chuva,
deve usar-se sempre qualquer boné de pala para
possibilitar uma eficaz protecção contra a chuva
que nos cai no rosto. Quem nunca
experimentou, ficará admirado com a eficácia
de tão simples e pequena peça do equipamento.
-+ CALOR - Estar equipado apenas e só com
calções, camisola e sapatos, é tudo quanto se
necessita ... Ah, não esquecer, igualmente, o
imprescindível boné. No caso de se apostar em
sessão de corrida com mais de 15 km, prever a
utilização de um pequeno cinto que comporte
dois recipientes de 25 cc de água, com o
objectivo de evitar possíveis situações de
desidratação. Naturalmente que o equipamento
deve ser de cores" claras ...
A NOITE PARA CORRER. ..
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Ao abordar a prática da Corrida em
"Todo o Terreno", também estou a considerar a
chamada corrida nocturna. Sim, porque a noite
também pode ser um excelente período do dia
para a prática da Corrida, sobretudo quando a
temperatura ambiente é elevada. Neste caso,
impõe-se a utilização de uma pequena lanterna,
a permitir vislumbrar o terreno que se pisa. A
palavra "vislumbrar" foi aqui aplicada
exactamente para transmitir a todos os que me
lêem a noção de que, quando se corre à noite,
não é necessário ter sempre ligada a luz da
lanterna, pois o olho humano adapta-se de certa
forma à escuridão, pelo que a progressão do
corredor não se rodeia de tanta preocupação.
Outro dado a reter, é que, em vez de se
utilizar lanterna fixa na cabeça, é preferível
transportá-la numa das mãos, já que correr
durante várias dezenas de minutos ç~~ um foco
oscilando permanentemente, r devido aos
movimentos da cabeça, acaba por causar stresse
adicional ao esforço desenvolvido pelo atleta.
Por outro lado, se a lanterna estiver na mão, é
muito fácil ligá-Ia ou desligá-Ia.
O que aconselhamos, no caso de corridas à
noite, e sem que haja luz artificial envolvente, é
que a pequena lanterna conduzida na mão, deve
ser ligada durante uns 30 segundos, o que
permite visualizar o percurso durante 100 a 200
metros, esperar cerca de 1 a 2 minutos, e repetir
depois a operação. Quem experimentar esta
minha recomendação, verificará que os olhos
humanos também se adaptam razoavelmente à
escuridão.
Os treinos nocturnos proporcionam outro
prazer quando efectuados em grupo, <luaI
"brincadeira de crianças" que ousa enfrentar a
escuridão.
A utilização de equipamentos reflectores é
algo a ter sempre presente, embora não seja
recomendável a escolha de traçados com grande
trânsito automóvel ou outros com pisos muito
irregulares.
OS PRAZERES DA MONTANHA
Subir a correr uma rampa acentuada, é
proposta pouco atraente para muitos
corredores, mas existe uma percentagem deles
que, exactamente nessa situação, se sente mais
motivada. Idêntico cenário se passa quanto a
descidas com forte inclinação. Para uns, é vê-los
a voar pela ladeira abaixo, enquanto outros
parecem tremer perante o receio de queda
eminente.
A minha perspectiva quanto ao ."Todo o
Terreno", e para além do tipo de pisos
propriamente dito, comporta também outra
chave, e essa-é a utilização, tanto quanto possível
sistemática, dos terrenos acidentados, variações
essas que podem se pouco acentuadas.
À subir, o atleta deve procurar a utilização
de pequenas passadas, com boas impulsões nas
pontas dos pés e um forte movimento e
amplitude dos braços, tudo isso acompanhado
da inclinação do tronco para a frente e da visão
centrada apenas num campo de 2 a 3 metros do
solo. Quanto à respiração, ela deve ser forçada,
com particular incidência na fase de expiração.
A descer, a passada deve ser do mesmo
tipo, mas com os apoios centrados na zona dos
calcanhares. A amplitude dos braços, por sua
vez, será do tipo alargado e sempre com a
preocupação de manter o equilíbrio. O tronco
terá de se manter direito e, acima de tudo, o
atleta tem de assumir um comportamento de
coragem e atitude destemida quando se lhe
apresentam maiores inclinações.
Quer o terreno se apresente a subir ou a
descer, e contrariamente ao que muitos
corredores pensam, a utilização de rampas exige
uma fase de aprendizagem, a qual pode
melhorar de maneira significativa a progressão
do atleta. Por exemplo, um dos maiores erros a
que se assiste nas descidas é o alongamento da
passada, o que reduz a eficácia dos apoios e
contribui para mais hipóteses de quedas.
Outro erro que se observa com frequência,
relaciona-se com a ausência de relaxamento
corporal, o que implica maior desgaste
energético.
UM POUCO DE TODOS OS PISOS
Não, não pensem que vou aconselhar algo
que se assemelhe a dietas para regularização do
peso corporal, estilo 30% disto, 20 daquilo, mais
15 de aqueloutro, etc., para se conseguir as
calorias ou os quilómetros exactos. A minha
experiência em África, ao observar centenas de
corredores de todo o tipo, ensinou-me que a dose
ideal passa sempre por aplicar um pouco de
tudo, ou seja, na mesma sessão de preparação,
tentar utilizar, tanto quanto possível, as mais
variadas superfícies, de forma a habituar a
estrutura muscular às mais diferentes situações.
Por exemplo, começar num, piso relvado,
depois, terra batida, uma zona de areia e assim
sucessivamente. Tal forma de actuar apresenta
duas grandes vantagens. A primeira, relativa à
habituação do organismo, já referimos. A
segunda, diz respeito ao' facto de um treino em
vários pisos levar o atleta a permanecer
relativamente pouco tempo em cada um deles,
pelo que a hipótese de lesão em piso mais
perigoso é menor, já que o tempo de treino é
distribuído por várias situações
Evidentemente que, no Quénia, os
corredores não utilizam alguns dos pisos
indicados acima, mas isso não invalida que haja
a preocupação quase sistemática de variarem .
sempre que possível os terrenos que pisam. Já a
mesma informação não posso dar quanto à
minha experiência com corredores europeus, os
quais, quase sempre, centram as suas sessões de
preparação num determinado tipo de terreno.
. T~l ~omo afir~e~ anterio~mente SO~~t_'"
ímportãncía da vanaçao dos piSOS,tambem a
torno extensiva quanto ao grau de ínclínaçãê
dos mesmos. Uma coisa é, por exemplo, correr
durante uma hora sobre um piso absolutamente
plano e uniforme, do que fazê-lo variando pisos.'
e inclinações dos mesmos. O' ganho na Forma
física de qualquer corredor é muito mais
significativo quando se introduzem muitas
variantes na sua preparação, e não será por
acaso que uma boa parte dos êxitos dos
corredores africanos tem por base a execução de
centenas de quilómetros no mais variado tipo de
terreno .•
Por Dennis Burke
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